domingo, 20 de dezembro de 2020

Realidade turva


   




09 de dezembro de 2020. Carro parado no sinal vermelho. Bairro Benfica, Avenida Imperador, cruzamento com a rua Antônio Pompeu. Dezoito horas e sete minutos na noviça noite nublada. No céu sem estrelas, cinco luzes brancas, cinco vermelhas e uma amarela, resumidas a postes e sinais de trânsito, todas cobertas pela película de vidro do para-brisa manchado de chuva frustrada. Estacionada atrás da imagem está minha esposa, à sua frente, nada além da própria realidade turva. No horizonte, árvores verdes frondosas misturam-se com o azul escuro do firmamento. Um carro vermelho dobra na esquina, do outro lado um carro pequeno segue um ônibus. À medida que o olho corre, pontos ancorados de luzes preenchem a distância num banho de sangue fantasmagórico das trilhas metropolitanas. A calçada espera o humano, o piche acolhe as máquinas. Fios altivos simulam trapézios mortais com redes elétricas, iluminam a noite artificionalizando o que seria o dia na procura de não interromper a labuta do homo faber. O precioso instante, o click mortal numa fração de segundos desvela a relação simbiótica, sem humanos - apenas seus rastros -, entre as máquinas e as plantas, pois quem revela é a lente da câmera.

O foco da fotografia está no painel, no para-brisa ou na rua? E o meu foco, é meu ou da máquina fotográfica?

A imagem fixada pela câmera nos permite voltar ao seu olhar, percorrer a foto, despertar para seus detalhes efêmeros, vislumbrar a fração do segundo. O que vejo? Detalhes do fragmento, do momento preciso em que a fotografia foi realizada. Vejo o que minha consciência, no instante do flash, não viu, um mundo inconsciente estagnado no retrato dos agoras.

Do lado direito um prédio contendo, o que acredito ser, um outdoor. Nele anunciam-se promessas de um futuro próspero. Na frente do ônibus, um motoqueiro freia bruscamente devido a um cão desatento. A senhora no carro vermelho escuta seus louvores preferidos no rádio para suportar o engarrafamento. O homem-máquina pilotando a moto no canto esquerdo planeja subjugar o sinal vermelho, a seu comando. E eu, bem, eu tenho a impressão de que já estive neste lugar antes.


Paulo Victor de Albuquerque Silva

7 comentários:

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Jayme, Júlio e Paulo.