domingo, 31 de maio de 2020

O canto dos pássaros


    Com sua mãe enferma no quarto, Miúda habitava a maior parte sua no quintal. Voava feito passarinho e pousava em frente à imensa gaiola para assistir o cárcere das aves. Os cantos lhe atraíam. Eram vários, cada cantoria com sua cor e tamanho. O menor deles era o de Miúda. Cantava cedo da manhã. Cantava a história de cada ave como poeta canta à vida. Só voltava à casa para comer sua ração, posta por seu Pai triste. Sua gaiola era um quintal feérico de ilusões.

    Há meses Miúda não saía da morada familiar, as paredes do agora ruíam e sua mãe não poderia habitá-las por muito tempo, por isso, como Maria Fumaça, viajou até o fim da estação dos pássaros. Desembarcou na terra seca. Sentada, ela espera o voo do passarinho amarelo, “mais lindo que os cactos do Papai”. Achava que o canto mais belo vinha do assobio, não da palavra que saía da radiola no centro da sala. Na ambição de voar com o bicho amarelo, Miúda entoava seu canto num convite harmonioso que se confundia com o pranto do passarinho.

    No amanhã chegado, o Pai de Miúda lhe chama ao quarto. Pede para que sua filha se despeça de sua mãe, pois ela tem uma viagem que deve fazer sozinha. Miúda solta o canto mais doce que sua mãe até então ouvira de um passarinho. A genitora aceita o convite e parte.

    Miúda voa desesperadamente. Pousa no quintal. Abre a gaiola. Pega o passarinho amarelo de cima do galho. Os outros pássaros, assustados, se recolhem no canto da jaula. Do lado de fora com o bicho na mão, Miúda sobe a árvore mais alta e dá liberdade ao amarelinho. Desnorteado ele voa sem rumo e pousa na telha da casa de sua, até então, companheira de elevação. Do telhado o horizonte lhe apresenta a morte, que com uma abocanhada de seu predador arranca-lhe o suspiro.

    Como criança, ao chão, Miúda chorava sua perda, e tinha, pela primeira vez, a consciência do morrer. Só restaram os cantos dos pássaros de um quintal com terra e tijolos. Na mente, um novo desejo, com a esperança de não sentir dor, “eu queria ser um passarinho”.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

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