domingo, 13 de janeiro de 2019

J.

O sol tenta aparecer em meio as nuvens amareladas e já de um entardecer de primavera. A poluição é vista do monte  alto onde caminho. Encontro J. Ele senta no banco de entrada do parque, finge que está falando com alguém no celular. Traga discretamente sua cannabis, para que eu não veja. Há algo de discreto em J. como em todos os adolescentes. Acho que não confia em mim para essas coisas. Duvida um pouco. Mas parece normal. Aos poucos percebo que decolou. Lembro de um canto no bosque mais adiante para levá-lo, não queria constrangê-lo. Caminho, mas canso rápido corroído pelos pensares. As pessoas olham para J. como um nada e começam a andar rápido. Adolescentes passam com algum vídeo idiota no celular ou coisa burra que J. sempre diz "esses merdas, só fazem isso o dia todo". J. afugenta qualquer um com seu ar ébrio. Uma fitness passa correndo e transpirando, J. está exageradamente chapado e desconexo. Tonto e atento. Observa tudo. Tonto. Pássaros, sombras, um homem fotografa J. na passagem do tempo, tenta fazer contato com sua perspectiva por detrás dele. J. sequer enxerga a sombra das árvores que animava o fotógrafo. As pétalas das rosas brancas caídas no chão. J. entrou dentro de si. Meio sonolento e preguiçoso. Senta. Sons de pássaros. Quer dizer algo. Sons estranhos de um bixo noturno. E a Luz do dia é breve. Que grande viagem de J. ensurdecido. Vestido como se fosse assassinar crianças e velhinhos nesse parque. Como se fosse um maníaco. Imagem destrutiva de J. mesmo. Chapado. J. diz que quer sair, ir para casa não quer conversa. Quer fugir de algo que não é. Ele me diz: "Ouso dizer nos olhares dessas crianças minha inocência neandertal. Minha cara. Devo estar horrível, um monstro procurado pelo medo."
Ele sorri e eu disfarço o meu desespero. Talvez seu sorriso fosse mais desesperado que meu olhar. Desvio do sorriso. Está sombrio como o cheiro de cadáver que sobe nas árvores do Père Lachaise. Há um fundo triste em J. Não sei o que. Como se precisasse resolver algo constantemente. Uma atenção e tensão pelo nada. Ele disfarça no celular trêmulo. Travado e com medo do não-sei-o-que. Ele me olha turvo: "Eu caço como um bicho de rapina."
Aconselho dar passos mais leves no caminhar. Explico que o espírito capta as entranhas do caminhar e reabro o jogo a meu favor. É importante praticar isso. Ele dizia: "Uma criança quer amadurecer em mim. Eu estou grávido de crianças-ideias. De sentimentos vindouros. Eu sou o pai da vida. Devo protegê-la. As ideias todas da humanidade são sementes, cujo jardineiro sou eu. Eu sou a fábrica de sementes. Eu sou a própria abundância da natureza em florear. Ideias são sementes. E eu sou uma fábrica de amadurecimento. Caço os solos prediletos de ideias mães." Passa estranhamente uma polícia a cavalo. Algo raro. Misteriosamente e aos poucos nos acostumamos com a discreta guerra que nunca deixou de haver. Ele diz "Coincidências chapantes." De repente ele entra em um devir... é o próprio policial do parque. Exuberante em sua pose indômita. O barão da bondade onde a sociedade deixa guardar o sentimento de tranquilidade. Projeta-se no herói. O bem aventurado adormecido em todos. De repente ele se diz a própria bondade. Anuncia gritando: "Não sou o erro. Não sou o chapado. Sou o próprio prazer da copa das árvores na luz do sol. Sou um neanthertal nessa terra. Sinto-me assim sem mais nem menos. Como se quando eu falasse e sorrisse eu quisesse uivar, grunhir e subir nas árvores para imitar os pássaros." Gritava igual o corvo todo preto que homenageia a obscuridade das entranhas da terra.  Eu lhe dizia que havia algo de uma energia solícita nos montes. Povos migratórios pisaram onde pisávamos. Ele sentia-se meio neanthertal meio corvo. "Milhares de anos e sou ainda capaz de chorar a mesma solidão." O corvo apanha um sapo. Parte a cabeça do bixo ao meio. Um isqueiro no banco do lado surge. Não tínhamos percebido. J. diz "O fogo neanthertal, o fogo como instrumento sentado ao lado. O fogo da caça e num botão frabricado. Abandono de ritual." Um cara forte e sua mulher fumam um beque gigante. Encontramos o tal do homem do século xxi que ele tanto falava, quando saíamos caminhando no bosque. São duas emas gigantes. J neandertal na conexão nua com um passado remoto. Volto para casa e me despeço. J anuncia "Pareço ter milhares e milhares de anos. Velho como o sol." E bebe água como uma nascente. Deitou-se e dormia como uma besta. Sabia eu que quando voltasse, voltava como quem retorna de um passado interno e desconhecido. Rico de proezas misteriosas da própria vida migrante e  da caça que grunhe e geme. Havia algo nele de uma atenta tensão de caçador. Usufruindo de radares atentos e de paixões ameaçadoras. Agora estava mais liberto.

Por Jayme Mathias

2 comentários:

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Jayme, Júlio e Paulo.