domingo, 22 de dezembro de 2019

Gaspar

A mendicância sábia dos olhos vidrados de Gaspar dizia muito que nem tudo tá perdido nesse céu metálico. O ódio virou uma espécie de religião no peito dos homi, mas eu ainda confio no sorriso e queria mesmo era roubar de deus a beleza da verdade. E não era tão tarde da noite quando decidi voltar pra sarjeta e encontrei o véi no ônibus, não deus, mas Gaspar que é muito mais importante. Encontrei e foi do nada. Ele tava indo também pro barraco em Jaures. Ele vinha com Carlito, o cão esbofeteado, desnorteado, doido e pura a lama seca. Os dois pareciam que tinham matado um bixo e enfiado nas calças. 
- Gaspar, seu carne de pescoço, tu tá pura a mijo!
 - Num gasto mais um centavo de banho público, Zé. Os fia da puta dos seguranças num libera a gente pra num espantar turista, sabe como é né? Último banho faz um mês ou mais e foi junto com os rato que nadavam ali no canal St Martin. Eu fiquei pura a peixe.
- Sei como é, mas faz tempo marvado tu tá sumido demais...
- Ah disgramado, mas esse mal cheiro também é tu né? Achava que era o Carlito aqui peidando.
O cão tava pôde e ninguém nem via os zói do bixim. Escondia todos os tipos de carrapato e piolho na pelagem cinza. Ele me olhava sem reconhecer, mas também veio até mim com preguiça de latir roçando na minha perna. Se falasse, ele diria "vai tomar no cu, e deixa eu peidar na sua cara". 
E eu fiz um carinho nele, mas quando vejo de volta Gaspar tá de olhos vidrados, como quem tem uma alegria de repente:
- Toma um euro procê. Um procê e procê e procê - saiu dando pra cada um do ônibus, em vez de pedir. 
Eu sei lá que merda ele tinha tomado pra não pedir nosso ganha-pão, ele tava distribuindo nosso lucro pra todo mundo.
- Ei cara de bagre, que merda é essa. Tá louco de ácido é mané? Parece que tá comendo rato pra cumer...
Desajeitado, tentei falar pras pessoas: senhoras e senhores perdoem nosso mau cheiro e estragar essa noite maravilhosa, mas nos devolvam, por favor, cada centavo que nós demos, é nosso trabalho de um dia inteiro e o colega aqui não tá muito bem.
Voei nos peitos de Gaspar e empurrei o gatuno pra ele sentar e as pessoas se afastavam fácil por conta do cheiro.
- Dá aqui de volta sinhora, obrigado viu deus te abençoe... obrigado garotim, deus passe na sua frente. É que meu amigo ali tá meio doido. Sabe como é né? E eu fazia gesto com as mãos pra criancinha rir.
- Mas profeta vocês vêem poucos hoje, né? – Gargalhava Gaspar de novo olhando no fundo do olho de cada um, já em pé. Seus olhos iluminavam e ofuscavam os olhos dos outros.
- É um euro fio duma mãe, um euro, como é que a gente vai pra casa sem nada? O pessoal do barraco tá fazendo a cota pra gente se mudar antes que o verão acabe. - Eu dizia pra ele acordar daquela viagem da cabeça dele. - Tá maluco das ideia fi de puta? 
- Zé, eu lá quero saber de dinheiro, eu num sou lacaio do capital não porra. - Ele respondia de olhos ainda vidrados e sorria como quem tivesse descoberto algo - eu sou a verdade. - ele dizia arrogante como um bosta.
- Gaspar, pera porra, tu tá é com dor de barriga, truta. – Sinhô, desço na próxima. Ai não, é aqui que aperta. Pessoal num chamem a polícia não viu, já tamo indo já viu? - Eu dizia pras pessoas e cochichava baixinho pro Gaspar: - Ei zé ruela, para de gritar, porra.
Até que ele profetizou algo que me fez rir e chorar ao mesmo tempo:
- Pra cada conservador reacionário foi isso que a extrema direita investiu todo esse tempo procês votar. Um euro fias da puta. Esses fia da puta em qualquer canto do mundo só investem isso em vocês, vocês ai nesses celulares de merda nem olham pro céu. Eu escapei da armadilha e hoje tou aqui pra vos revelar a verdade.
Eu não me contive e dei-lhe um abraço rindo da sua ideia, querendo disfarçar meu choro. 
- Pessoal, desculpe viu? – Eu dizia.
- Basta cês ir pra escola e aprender a contar. Não sabiam disso? A escola não vos ensina. Eu vos ensino: vocês valem um euro não mais que isso.
Um garoto bonitim dos zoi azul disse comendo uma batata do mc lanche feliz:
- Eu sei sim meu senhor.
Eu comecei a rir. O menininho encucado não entendia. 
- A verdade tá escancarada. Foi apenas um euro ou menos, só isso já basta. Não é muito. 
Eu só conseguia rir cada vez mais e um vulcão estendeu no meu peito. Dizem que os doze profetas sentiram isso com cristo. 
- Se a escola tivesse ensinado a calcular, não tinha um euro que pagasse esse voto docês. O adestramento escolar que todos chamam de ensino é barato demais pro poder. Esses celulares aí nem se fala, é migalha. Eles querem garantir que cês num façam esse cálculo, saibam o preço de tudo, mas o valor de nada.
Saí correndo daquela porra de ônibus. Gaspar e Carlito saíram atrás mandando todo mundo ir tomar no cu. Compramos vinho barato com o resto que sobrou. Entramos no barraco. 
Ninguém falava com a gente. A lua foi brilhar noutro lugar e eu abraçava o marvado como um velho bandido. Eu fui dormir com o velho mendigo da rua e cão de botequim e só pensava em tudo que ele dizia naquela noite. Carlito, desconfiado comigo ali desistia de latir. Só eu chorava porque eles pareciam anjos dormindo. Eu nunca tinha visto anjos pelo ar, mas Gaspar me falava do amor. Dizia que aquilo que os fia da puta do estado e do capital falam não se deve jamais ouvir, e que o amor sempre vencerá o ódio... E a vida fazia muito mais sentido agora. Eu abracei Carlito pra dormir:
- Sabe Carlito? A porra do ódio dos nossos tempos é uma moda passageira que se vai tal qual fumaça. O amanhã quem sabe vai ser outro dia.

Jayme Mathias 

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