domingo, 23 de maio de 2021

2789


O ano é 2789, mil anos após a dita revolução. Há mais números no ano que na minha conta bancária. Todo mundo tem em média dois mil dinheiros na conta para viver o próximo mês no mundo todo... Marquei minha ida ao médico num App desenvolvido por um PhD em TI do MIT, hoje deve ganhar uns dois mil dinheiros. Meu médico era PhD em Harvard e pedi para ele me receitar um colírio descoberto por uma farmacêutica PhD na Sorbonne, ambos devem ganhar uns dois mil dinheiros. Encontrei antes de entrar, na calçada um PhD em Filosofia da Universidade de Heidelberg, pedindo uma grana para o almoço, ele deve ganhar um mil dinheiro e pede uma grana complementar na calçada da padaria. Fui ao mercado, o caixa era PhD em contabilidade na Universidade de Princeton deve ganhar também seus dois mil dinheiros. Preparei meu almoço em casa, mas antes, cumprimentei o dono do restaurante do lado de casa e disse que hoje não ia comer lá, ele é PhD em gastronomia em Oxford e renomado na Cordon Bleu de Paris ganhando seus dois mil dinheiros. De tarde, liguei para o pedreiro colocar meus móveis da cozinha. Ele e toda sua equipe formada na UCLA ganhando seus dois mil dinheiros. Marquei minha terapeuta, ela deve ganhar mil dinheiros e também pede na rua do supermercado uma grana para complementar seu mês. Fora isso, a rua estava cheia de mendigos, todos eles escritores e poetas que não chegam nem à metade de mil dinheiros por mês, então pedem uma grana a mais todo dia, letrados e formados com cinco idiomas ou até mais, dos clássicos aos contemporâneos. Sabem todas as filosofias, as teorias políticas, as contradições sociais, estudam a fundo as relações humanas e conhecem o humano demasiado humano como a palma da mão. Aí eu dormi com os olhos atentos numa palestra de um economista da USP que faz isso para complementar o seu mês, pois ganha também menos de mil dinheiros. Ele dizia que os multimilionários são cada vez mais minoria e aí eu soube, com isso, que todos nós trabalhadores somos cada vez mais especialistas no que menos importa, justamente por sermos incapazes de mudar nossa sociedade humana demasiada humana. Tudo o que é humano é marginal. Peguei um livro de um marginal na estante e falei para o barbudo na capa: meu caro amigo, o problema não era a alienação. E dormi... amanhã será o ano 2790, um número a mais que não tenho na minha conta bancária. Feliz ano novo, caro Carlos Marcus!

 

Jayme Mathias Netto


Um comentário:

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Jayme, Júlio e Paulo.