domingo, 3 de outubro de 2021

Uma xícara de café.

  O vício no café revela camadas do meu existir, foi ele que expôs minha labirintite e as vertigens da vida, me desvelou a necessidade do doce. Me inseriu em uma nova rotina em que sempre reponho os grãos que demarcam os caminhos do meu labirinto. Eu sempre preparo uma garrafa de um litro, a de quinhentos mililitros era pequena demais para mim e minha esposa. Ela fica em cima do balcão, entre a cozinha e a sala, uma garrafa preta, da cor do café. Me acompanha o dia inteiro, entre aulas, estudos, entretenimento. Quando estou merendando tomo café com leite, quando quero redobrar a atenção tomo puro. Na tentativa de diminuir o açúcar passei ao adoçante - um em pó -, foi o que me recomendaram. O café dita o ritmo do meu dia, na falta, tenho enxaqueca.

Hoje de manhã estava em casa e me encaminhei para a segunda xícara de café. Tinha uma garrafa quase inteira para esvaziar no decorrer do dia. Segui o mesmo ritual. Peguei a xícara, pus ao lado da garrafa, de posse da segunda menor colher que possuo, raspei um pedacinho do adoçante e coloquei no fundo do recipiente. Querendo satisfazer um desejo obscuro, completei com duas colheres de leite em pó o preparo. Então fui interrompido. Uma formiga acompanhou a doçura do leite em pó até o fundo da minha xícara. Talvez eu tenha interrompido o ritual labiríntico em torno do doce realizado pela formiga. Eu não queria nem matar aquele ser ou mesmo comê-lo, não fazia parte da minha cerimônia. Encostei a mini colher perto dela, ela subiu. Perdida correu sobre a colher, alcançou minha mão e, antes de chegar ao meu pulso, dei um forte sopro levando-a ao chão. Percebi que ela sobreviveu e continuou seu caminho, livre, à procura dos seus velhos desejos. Eu também fiz o mesmo, voltei ao meu desejo desgastado pelo acaso, mas agora um pouco mais feliz por vivenciar a liberdade da pequenina, que percorria seu mundo, sem sonhos, sem finalidade, tal qual quem prepara e bebe seu café com leite em um novo dia de migalhas cruzadas. Depois da conexão de todos os ingredientes com o líquido escuro, depois de ver a via láctea em espiral se formar dentro da xícara, pensei que talvez eu também poderia ser livre, sem sonhos e sem finalidade. Sai do balcão mais esperançoso com a vida e seus mistérios, talvez lá no fim, na alcova de nossos desejos ocultos, exista uma conexão entre todos os seres e as coisas. Mas foi na curva, quase na sala, no limiar do tempo de uma vida, que pisei, sem perceber, na formiga.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


4 comentários:

  1. Capitou bem as divagações e toda metafísica que pode estar envolvida no ritual de preparar o cafe haha.Parabens pelo texto!

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  2. Que texto lindo, doce e sútil❤️👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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  3. E eu viciado em álcool piso na minha tristeza... O problema e que a tristeza e álcool sempre pisam de volta!

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