domingo, 3 de dezembro de 2017

O bote

O inverno chegou no sertão. A água que cai derrete o solo numa lama pastosa que atola o pé dos dois meninos felizes que correm embrenhados nos mato. Eles correm pois a chuva anuncia a chegada da grande serpente que engole tudo pela frente. O anseio dos dois é de fazerem parte do bucho da gigante, desejam serem engolidos em uma abocanhada só.

lá está ela, seu movimento é ligeiro. A cascavel feroz agita a cauda ao avistar suas duas presas. O ataque é certeiro. Não há saída. A digestão da fera consome os meninos por inteiro.

Após o descanso do bicho os dois são expelidos e voltam para sua casa alegres como se eles é que tivessem feito a refeição. “Que animal magnífico!” Pensava Emanuel consigo. “Pena que só fica aqui enquanto chove”. Mal sabia Emanuel que aquela foi a última vez que ele fôra engolido pela serpente.

No dia seguinte receberam a visita de um homem muito ilustre que até mesmo seu nome era subjugado pela alcunha de Doutor. Bicho da cidade, homem da ciência, inteligência incontestável. Ora, logo os meninos se aperriaram para mostrar o bicho que eles encontraram no meio dos mato, ver se o Tio Doutor gostaria de conhecer.

Enquanto caminhavam, Alberto imaginava o espanto que seu Tio iria receber com o bote da serpente, sorria sozinho enquanto andava construindo sua imaginação. Lá está ela. Os dois fecham os olhos. A respiração pára esperando o bote. Nada. O Doutor imóvel fala. “Mas isso é só um rio”. Morte. A morte da serpente estava anunciada. O homem da ciência proclama o seu sepulcro.

Os invernos se passaram e Emanuel nunca mais voltou para o ventre da serpente, a terra rachada ou a lama sebenta refletiam na melancolia do seu olhar. Alberto, por sua vez, tomou outra escolha, decidiu fugir da terra dos homens e ir morar no bucho da cascavel, pois somente lá ele era feliz.

Certa vez me embrenhei no meio dos mato e perguntei para a chuva: “O que vale mais para uma única vida, a realidade do barro ou a felicidade da serpente?”.       

Paulo Victor Albuquerque
vivisseccao.blogspot.com

6 comentários:

  1. Muito obrigado pela leitura. Fico feliz que tenha gostado!

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  2. Que texto maravilhoso! Me fez pensar na felicidade pura e inocente das crianças, na supresa, no encanto pela vida. Às vezes, o que nos falta é inocência no olhar, para enxergar serpente, e não barro.
    Abraços

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    1. Muito obrigado pelas palavras. A criança nós faz ver outros mundos possíveis.

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Jayme, Júlio e Paulo.