sábado, 1 de julho de 2017

Julho do leitor: "Sangue" de Anne Jamille Sampaio

Sangue

Aqui eu me sento para dissertar sobre mim, de mim, talvez até para mim. Em uma fiel tentativa de organização mental, diante de um turbilhão de pensamentos que me invadem, me tomam, me laçam, fazem de mim uma mulher imersa em um contexto confuso, cheio, recheado, repleto de dúvidas, indecisões, incertezas. Eis a minha angústia escrita em letra de um texto. Texto ilógico, sem começo, em busca de um meio, sem saber se realmente deseja chegar a um fim.
As palavras saem em uma rapidez tamanha, em uma tentativa fugaz, que tenta ser sagaz, de dizer sobre o indizível, de dizer sobre mim, sobre quem sou.
Sobre mim, como é duro e difícil dizer. Pensei, repensei, tre-pensei – ajudem-me palavras, ajudem-me a dizer algo que seja substancial, importante, que tanto tenho relutado, em conflitos sem nome.
A falta de graça, a falta de vida que rodeia-me, sob a forma de pessoas sem graça, sem nata, sem algo que faça ferver, que faça mexer, que faça inquietar dentro de mim – algo que faça fugir de pensamentos loucos, insanos que me consomem, como uma vela, como uma vela que se destrói, se corroi, se põe a findar-se sem nunca, entretanto, conseguir chegar a lugar algum.
Falar, verborragiar, explicar, pensar, repensar, envolver-se por palavras. Apaixonar-se pela palavra.
Palavra é vida. Palavra me é vital! A palavra me rouba de mim ou me faz retomar a mim mesma? A aquilo que sou, que faço, refaço, repenso, renasço. Palavra, me roube, me tome, me consuma, faça-me sua – em toda a minha confusão, em todo o meu conflito, em todo o meu não saber nada sobre mim. Ou ao menos, me tome, me roube e faça morada sob a forma de paz ou de algo parecido com isso.
Seja minha e não me roube de mim mesma. Ancore e faça morada. Deixe-me ser.
Exigir: exigência, necessidade de tanto, cobrança por algo tão grandioso, esplendoroso.. Exigir tanto de outros, exigir tanto, tanto, tanto..Talvez até chegar a ter tão pouco. Pouco, nada, quase nada. Imaginação e fantasia. Imaginação e sensibilidade. Imaginação e algo além de si mesma. Algo que me transpõe, que adentra minha carne, que adentra minhas vísceras, que invade todos os meus vasos, consome meu ar. Me deixa impedida de reagir fisiologicamente, deixando-me ao patológico o único meio de conseguir emergir. Sair de um estado tão louco, tão solto, tão nada aparentemente meu.
Não sou minha. Tento me fazer minha de tantas formas. Mas isso não pode ser dito, não pode ser verbalizado. Deve ser calado. Deve ser mantido em chaves que são tão nossas, que são tão porcas, por estarem imersas em uma lama de mentiras, de vaidades, de falsidades. Não poder expor, colocar, gritar, mexer em alto e bom tom a angústia da vida, das feridas. Ao invés, sorrimos, cumprimos protocolos sem graça, sem praça, sem nada! Protocolos sociais, que nos fazem sorrir risos bestiais, soltos, imperativos até – mas risos sem graça, sem nada. São mesmo risos ou apenas dentes mostrados, revelados em uma boca anatomicamente perfeita e destituída de signos, sinais, símbolos..? Eis uma questão, tão dura e difícil questão.
Inquietação, loucura, loucura, loucura.
Psicose. Psicose. Psicose. Delírios, delírios, delírios. Alucinações? Alucinações? Alucinações? Repetições. Repetições, repetições. Repito, repito, repito. Reflito.
Digo muito, mas não digo nada. Exponho a mim, rasgando meu papel em sangue, expondo cicatrizes, vísceras, fístulas que formam abscessos negados, mas que insistem em mostrar toda a sua dor, toda a sua denúncia de uma sensibilidade guardada, rasgada, resguardada. Dor, dor dor. Amor, amor, amor.
Reações pintadas em um quadro branco, sem cor, sem vida – em um branco e preto sem graça – que vem a denunciar um lado do preto que não é belo, que traz apenas o silêncio de uma inquietude indisplicente – sem a devida sabedoria de como se portar, de como se dizer.
Assim aqui chego. Em meia a loucas e insensatas palavras. Em um desnudamente há muito não feito.
Seria sustentável admiti-lo para além das palavras? É possível vivenciar isso além de um contexto de 4 paredes, um divã e um ouvido atento a escutar? É possível criar um laço fraterno que nos olhe nos olhos e nos receba em toda a loucura e insensatez que habitam aquilo que chamam de mente humana, ou melhor, de cérebro humano? Conexões sinápticas tentam dar conta de toda loucura, em uma conjuntura na qual as palavras tentam nos acomodar no mundo, junto às pessoas, as loucas e insensatas pessoas.
Pedir por um ouvido atento, que segue muito além de palavras quaisquer ditas sob a égide de uma censura maculada – quão difícil é uma escuta nua, uma escuta crua, que nos receba naquilo de mais louco que possuímos. Que nos receba em toda a atitude insana, desprovida de toda e qualquer tentativa de censurar a louca loucura que nos habita. Loucura louca impedida de gritar aos quatro cantos. Louca loucura que nos afirma quando podemos nomear algo e, através disso, justificar toda a nossa insensatez reprimida.
Não há algo específico, não há um nome específico. Há apenas uma loucura escrita, testada, vivenciada, exposta, à amostra de um olhar que se diga algo, de uma censura que sempre insiste em se fazer e de uma tentativa de perturbar o ser humano, aquele que tanto mente, que tanto sente, mas que pouco é realmente contente.
Rima insana, rima sem graça. Mas vai muito além de uma tentativa de casamento vocabular. Vai além, como sempre, vai além.
Eis isto. Isto sem nome. Isto que testa, que ameaça, que é imperativo. Isto, que vira isso e que se torna inominável. Eis o desejo. Eis a mim. Sou o desejo, vestida dele. Completamente dele.
Após longos e apressados 20 minutos - a censura me pediu para voltar outra vez: abri a porta.
“Sente-se, querida!”

Anne Jamile Sampaio

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