domingo, 27 de agosto de 2017

Sucata

-Merda. Merda.
Ela dava dois tapas na própria cara. O primeiro bem tímido, o segundo assustador de tão forte para ela mesma.
-Agora estamos sem celular e sem casa. Sem celular. Sem casa, repetia enquanto me cutucava inquieta. – não é verdade seu viado? Pedia por uma reação.
Eu recebia as cutucadas e dizia ao seu lado, na mesma pose:
-Exato, mas é normal. É normal, a vida é assim.
Queria confortá-la , mas com tom profundo e duvidoso de quem quer ameaçar-lhe a culpa. Na real cara, eu pensava que a vida era uma grande merda e que nada ia substituir onde já tinha chegado, entendeu? Essa situação que já nos acostumamos. Rosa comenta algo acrescentando como a Europa estava decadente. Eu apenas cocei o saco e repeti em eco “a Europa”.
-Porra Jorge tu tá chapado filho da puta? Você acha mesmo que a União Europeia vai pagar onde vamos dormir hoje? Não é tão fácil quanto arranjar essa teu crackzinho de merda não.
-Talvez Rosa, talvez. Vai dormir, porra..
Ela saiu pela ruas sem ter onde ir, voltou o mais rápido possível para nossa gerigonça empilhada no topo da sucata em St. Denis.
No fundo sei que por fora eu não disfarçava. A situação era miserável, pobre e faminta.
-Sabe, Jorge? não consegui puxar aquela merdinha do bolso do cara cheio de grana.
-Mas é sempre impossível no bolso deles. Tu tem essa mania de tentar o mais difícil, vaca, é melhor uma bolsa magra ou um casaco pra garantir não passar essa buceta de frio.
Ela andava em círculos ameaçadores da sua ira, queria evitar a fissura e pensar numa saída.
-Arranjasse pelo menos a parada, mas que merda;  era só a chave e com o celular pedia um sequestro, tou ligada. Mas isso tinha que dá certo!
Acendo o último cigarro. Ofereço a ela. E a gente tentava dormir como um animal preso e acostumado em ser lixo, com droga enfiada no cu, escondida um do outro, fingindo que nos importávamos com a fissura porque de fato queríamos mudar a situação. Puro fingimento.
Ela traga e comenta:
-Aí seu merda, bela chuva em?!
-Eu tou mal sua vadia...
Eu na verdade estava tão bem que ela se acalmou e me olhava sem me ameaçar com seus olhos dramáticos. Era uma merda de uma mentira aprisionada. Não havia nada de belo naquela lama de metal e na nossa vida amorosa.
Enquanto isso eu lembrava de nós dois na cama de seu quarto há 17 anos atrás, em que nada estava vencido, pelo contrário era um amor acabado de sair do estoque do armazém de sua tia que sustentou nós dois até os últimos meses. Linda, linda sonhava em reencontrar aquela princesa de trepada à primeira vista no leque de penumbras que os raios descrevem cada fase a vida que levávamos juntos até hoje. Eu dormia sonhando quando o amor e o sexo nos levava ao delírio de sermos o que quiséssemos. Entregávamos às fantasias das máscaras e camadas de nossos desejos. Sem isso não seria possível o contentamento do que hoje tentamos entender que seja esse amor. A desgraçada fez questão de roncar tão rápido, enquanto via ela de calcinha com seus vinte poucos anos e fodíamos como dois bichos se devorando na garagem, no banheiro ou em qualquer buraco que sua tia não nos visse. Essa merda de memória sempre funciona “se isso depois aquilo”, só queria meter daquele jeito de novo. Mas quem me fode sou eu mesmo. Casamos apressadamente, loucos e verdadeiros. O tempo rápido traz junto a desgraça. Na penumbra não vejo hoje senão uma velha suja, drogada e chata pra caralho. Apunhalo contra seu peito rápida e repetidas vezes uma faca cega, confiro se jorra sangue suficiente e se ela ainda respira, arranco do seu cu todas as pedras que tinha. Nunca mais deixo que ela interfira na memória boa que fomos. Deixo-a apodrecer na sucata e corro noite adentro. Adeus Rosa sua vadia. Adeus!

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

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