domingo, 2 de junho de 2019

Amon-Rá

Dirigia o carro rumo ao possível. Nele conversava sobre aquilo que fazemos quando sonhamos, o plano do por vir. A luz do sol que brilhava nos olhos dela era testemunha de nossos projetos. Nossa conversa perseguia aquele sol do fim de tarde que teimava em nos iluminar, queria nos indicar o caminho. Continuamos a persegui-lo. Um mundo possível se abria distante, onde nem o horizonte demarcava seu fim. Entre nós e o futuro repousavam as rodas. O pneu e o asfalto acolhiam as voltas do eterno retorno que nos sustenta sobre o mar negro de concreto. Mergulho na superfície tempestiva do oceano das grandes cidades. O sonho corre na mesma velocidade que o fluxo do rio preto.
Antes de adentrarmos na próxima vereda, fomos interrompidos por outro sol, agora vermelho. Um novo sol interrompe o sonho, qualquer sonho possível, um sol do real, do deserto do real. Cruel, cru, avassalador. Ele permanece no céu da metrópole somente por alguns segundos, depois dá lugar a outro sol, verde. Nesse ínterim, três crianças se espalham entre os carros. Como sacerdotisas do deus sol erguem os braços num louvor à miséria, um agradecimento tanto as oferendas dos que têm quanto aos segundos de visibilidade ofertados pelo divino.
Oferecemos o que não nos falta à primeira pequena, ela agradece. Sem perder tempo, já que sagrado, a segunda se aproxima. Não tenho mais o que não nos falta. Sinto a grande vergonha, aquela que sempre nos assola quando encontramos com o sagrado, a vergonha de ser humano. Peço desculpas. Tento me redimir, pergunto à menina de cabelo castanho banhado de sol se ela está estudando. Tão pequena, apoiada na porta do carro, ela me diz que não. Procuro na memória, com os segundos que me restam, uma fala arrebatadora que a convença a sair daquele culto, mas logo a pequenina se afasta de minhas profanidades. Sua casta não permite o sonho. O olho vermelho nos vigiava a todo instante.
Voltamos ao fluxo. Não vi mais o horizonte, somente o concreto. O rádio não permitiu que o silêncio fosse soberano. O assoalho nos impede pisar diretamente no solo preto. Alguns dirão que os grandes responsáveis desse culto são os genitores, os mesmos esquecem que nesses adultos ainda há o resquício de sua infância. São os produtores de castas, os clérigos meritocratas. Enquanto isso, tudo o que aquelas sacerdotisas desejam é que o deus sol lhes conceda mais alguns segundos para arrecadarem novas oferendas.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

Um comentário:

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Jayme, Júlio e Paulo.