domingo, 25 de março de 2018

Lachaise

As caveiras da tumba de Étienne-Gaspard Robert pareciam olhar para mim, com o deslize das profundezas do cemitério, anunciando o fato de que a fantasmagoria não tem provas, não tem dados, não é sequer rascunho científico, mas é comprovada por quem vivencia. Olhares cadavéricos marcam o fim de tarde no cemitério Père-Lachaise. Titubeio meio confuso dos últimos pintes que tomei com Elize, ao tentar encontrar as ruínas de Proust e Molière. Era tarde, corremos do crematório até a tumba do casal Abelardo e Eloisa. Mas a guarda já buzinava de longe. Outro a pé já apitava “vire a esquerda para a saída mais próxima” com certeza referindo-se a nós e a um grupo de americanas que estavam tentando visitar mais uma tumba para constar em sua check-list de turista.
-Talvez um dos primeiros aqui enterrados – dizia Elize, enquanto caminhávamos a passos largos, com sua aparência gótica que aos poucos estava tomando conta de um horizonte tenebroso. Alta, esguia, seus olhos maquiados e seus cabelos de chanel, pretíssimo e branca como um papel a4. Um rabisco de um personagem do Tim Burton. Ofegante, eu parei ali mesmo.
-Vamos mais devagar. Esse lance de fim de tarde chuvosa, no frio de janeiro, você toda gótica tá me dando calafrios. Não quero ter que fugir da polícia como da última vez em que fizemos nossas aventuras e tive que fingir que convulsionava.
-Sabe Marcel?! – Ela dizia cheia de ideias.- Poderíamos começar a pensar em ficar por aqui e pular o muro na saída. Muita gente lá da escola já fez isso e é muito foda quando tem poucos turistas como o dia de hoje. E eu sei o caminho, vem! Num vai ser nada demais!
O guarda conferia os últimos visitantes já com lanterna e um farejador que denunciaria nós dois certamente, quando agachamos nas moitas próximas da tumba cheia de pincéis e tintas em homenagem à Pissarro. Foi ali que a expertise do pintor nos tornou invisíveis em cores e, talvez, por conta do frio, as narinas rastreadoras do pastor alemão não nos percebeu. Desconfiados, nos levantamos e ouvimos os portões rangendo ao se fecharem.
-Ufa, agora somos só nós dois, livres de turistas e prontos para caminhar e conhecer. – Elize acendia a lanterna do celular que constava com exatos 17 por cento de bateria. A minha pelo contrário já acabara faz tempo.
-Vamos até o Jim Morisson. Precisamos homenagear essa falcatrua.
O cheiro era do frio de inverno. Um cheiro de gelo. Quando chegamos, a tumba dele e a ambientação mudava de tonalidade. Não éramos os únicos. Pouco depois de uns quarenta minutos chegavam viciados, prostitutas e pessoas que admiravam Jim. Eles tornavam o entardecer cinza-escuro em laranjas e cores vibrantes.
-Venham caras! Não se incomodem com essa gente, cada um com sua aventura né?- Dizia um que partilhava a seringa com os demais. E ria dizendo:-Só num recomendo experimentar isso, sabe como é né?! Vocês parecem ter idade dos meus netos.
-Com certeza não. Uma das garotas subia no colo dele e cavalgava como a serpente de “The end”. Se erguia toda para trás e dava para ver uma tatuagem por debaixo da jaqueta de couro preta, em homenagem a essa música. Uma serpente toda redobrável que vinha de algum lugar até outro naquele corpo reluzente.
-São os chakras meu querido. –Ela respondia ao meu olhar, enquanto virava sua dose como uma naja.
- Buda conseguiu a proeza de se alterar sozinho e gostava disso. Toda essa coisa divina é uma alteração da nossa cachola aqui dentro. – Ela sorria e apontava para sua testa onde os cabelos tingidos de um loiro-esbranquiçado caíam amarrados embaraçosamente, enquanto parecia convalescer com o fato de que o que ela dizia fazia muito sentido.
Elize já estava conversando com alguns caras na fogueirinha de papel que faziam ao redor da tumba. Eu me direcionei para eles.
-Fantasmagoria é uma coisa impressionante gata. Muitos de nós já vimos o espírito dele zanzando por aqui.
-É e sem chapação nenhuma, eu garanto. O fogo fátuo do Jim aparece até hoje. Desde os meus pais e a galera que vinha com ele na década de 70. Isso é o que nos leva a crer que seu espírito ainda canta e que não era o fim. Ele tá morto, sabe? Mas como seu espírito se esforçara para eternizar-se em poesia e música, ele flutua por aqui pra inspirar a gente. É aqui que criamos nossa arte. Repare. Ele mostrava suas poesias e pinturas. E dizia:
-Sabe as pitonisas e toda aquela coisa grega de ser inspirada pelos deuses?! Homero começa pedindo inspiração das musas. As musas são isso gata, são modos de alterar a percepção. As portas da percepção. Veja essas artes aqui são do nosso grupo artístico, estamos experimentando esse tipo de pintura...
-Psicodélica? – eu interrompia a conversa.
-Não cara, fantasmagórica. São extrações dessas coisas que vivenciamos apenas nós mesmos. Só entende quem vive. Vocês já experimentaram pelo menos meditar? Vem...
Todos chapados menos eu e, creio, Elize, meditavam na tumba de Jim Morrison como em um ritual praticado há muito, passado de geração em geração. Eu abria os olhos e via aquela roda de loucos. Queria sair dali. Comecei a pensar em Jim Morrison e suas músicas para o tempo passar. Comecei a vibrar o corpo e escutava uma voz dizer “Marcel, relaxe a cada expiração, deixe ir, deixe ir...”. Tremia numa mistura de frio e relaxamento. As músicas estavam evidentes em minha cabeça e eu ouvia sussurros em inglês: “não é mais você, liberte-se do ego. Não deixe sua mente inventar coisas, vá, vá e vá”. Eu via uma luz toda verde dentro da minha visão. Jim Morrison entoava um ritmo frenético. Era sua voz e seu corpo. Não sei porque isso estava fazendo sentido. O fluxo da vida, as batidas do coração de todos estavam seguindo um único compasso. Morrison vinha em forma de dança e sua imagem uivava. “Liberte-se Jim” eles diziam em coro. E como uma imagem que eu não podia controlar, via Jim como se estivesse se apresentando para nós, ditando cada palavra poética e tudo era ritmo: “A luz do desespero deve ser ultrapassada e o amor vence. Vivam os seus vestígios e as suas marcas!”. O sentimento de unidade com aquele cemitério e as razões, pesares e famílias, sofrimentos para alguns e alívio para outros. Tudo se fundira como explicação para além da racionalidade direta dos fatos. As seivas das árvores que transportavam nutrientes dos corpos que se compunha, testemunhas vivas de tudo que ali ocorrera. Cada planta e cada pedra era um olhar permissivo que se dizia e se justificava. Eu entendia e sentia tudo de forma única sem a qual seria incapaz de apreender o fenômeno da morte. Por trás da camada viva, haviam inúmeras possibilidades, isso era tão certo quanto qualquer outra coisa.
Finalizado o ritual, eu já tinha planejado em minha cabeça que pularíamos o muro para garantir que desse tempo de pegar o último metrô para nossas casas. Quando acordei e revirei-me, não havia ninguém no cemitério, exceto eu e Elize. Sabia, apesar da névoa, que ela estava ali comigo.
-O que houve Elize?Cadê todo mundo?Você não imagina tudo que se passou em minha cabeça. Quero sair logo daqui.
Eu tentava me levantar aos poucos. Sentia-me tonto e pesado. Tentava enxergar as coisas novamente como elas eram. Elize não respondia. Fui aos poucos vendo a tumba do Jim, a árvore cheia de homenagens. Grito por Elize ainda confuso. Vejo sombras. Eu estou em cima de um corpo. Grito em desespero e levanto abruptamente. Ainda por abrir os olhos do estado alterado em que eu vivenciara, vi um rosto pálido. Era um corpo morto. A terra amarronzada se mistura com um vestido esbranquiçado. Consigo seguir o rastro de onde parecia ter passado o corpo.
Vou em silêncio, explorando cada um das portas, semi-abertas, abertas ou as portas escancaradas da percepção. Penso o quanto o ponto de vista individual é fragmentado. Quando chego ao fim do rastro está escrito, numa tumba já corroída pelas marcas do tempo, os nomes “Elize M. Roquet– 21/03/1655 – 02/11/1702”. Silencioso, choro de desespero. Havia algum mundo possível em que tudo acontecera. Algum mundo possível onde as coisas se misturaram. Abracei-a. Sua pele gélida, seus olhos tomados quase inteiramente de um branco azulado. A mesma Elize já velha e pertencente a outro tempo e outro local. Ao lado “Homenagens também ao seu marido Marcel. R. Roquet –  24/08/1654 – 02/11/1702”.

Por Jayme Mathias Netto

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