domingo, 4 de novembro de 2018

Vivissecção

Bisturi… a pele demarcada é retalhada pelas mãos do especialista. A derme se expõe, respirando o novo mundo da superfície. Elo cirúrgico na imanência perfurante entre o limiar escalpelado de uma lâmina. O corte da carne é meticuloso, isso se torna mais fácil devido a qualidade das fibras expostas. Toda delicadeza se faz necessária para que os tecidos não sofram sequelas, estamos lidando com um produto de extrema qualidade. Martelo… Estalar de ossos em profusão, território da dor encharcada de sangue nas arestas da carcaça abatida. Broca… Acessando as profundezas do corpo abrem-se as portas do submundo. Lá o Hades se revela em todos os seus planos, das aflições com seus prantos e lamentações à ilha da bem-aventurança. A broca é a moeda de troca entregue ao barqueiro. Pinça… A precisão está na remoção do invasor, guerra microrgânica permeada pelas forças do espírito humano.
Cada um dos textos são micro incisões, cirurgias pontuais carregadas de instrumentos hospitalares. Nosso tempo exige velocidade. Tempo do inferno em que nada escapa, faz da superfície da vida fenomênica um submundo exposto às bactérias da realidade. O território do poder é a carne, diria Foucault. Daí vivissecção, cortar a carne com a faca que sai da língua navalha de Belchior. O texto navega, seja nas ondas do rádio, nas páginas do irreal, nas folhas da imprensa. O que nos resta após o ferimento? Cicatrizes. Elas tatuam os mapas geográficos na pele humana. Rotas de fugas desterritorializantes, órgãos surrupiados em abduções alienígenas, construções de novos corpos inumanos. Deficiências!? Não, potências.
Seringa… As luvas já estão postas. O recipiente contém o anestésico que em breve percorrerá a artéria genealógica. Agulha… O encaixe é preciso, como se fossem feitos um para o outro. Está montada a arma do torpor. O ataque não demora, primeiro suga-se um pouco do sangue, depois injeta-se o narcótico. Pressão, pulso… A dormência se alastra.
Em que fase do procedimento ocorreu a anestesia geral? Tudo foi esquecido e somente o corpo clama à consciência recordações de suas rotas marginalizadas. O mapa da carne é o verdadeiro guardião da memória. Quem vos escreve isso é o cirurgião, não a navalha.
Paulo Victor de Albuquerque Silva
Vivisseccao.blogspot.com

2 comentários:

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