domingo, 21 de janeiro de 2018

Crônica sonâmbula

Eu gosto de dormir.
São 8 horas de sono todo dia. Das 24 horas são 8. Um terço do dia, durmo.
Para cada três, um é sono.
Se eu dormisse 24 horas ganhava três dias de vigília.
E assim se engrandeceriam as proporções…
Se fossem 30 dias dormindo, seriam 90 dias acordados.
Um ano, três me traziam.
Se eu dormisse 30 anos, tinha mais noventa.
Se todos nós antes de viver dormíssemos 30 anos, o mundo teria as cápsulas de sono para as pessoas dormirem desde quando nascessem. 
E depois amanheceriam seus dias e longas noites sem ficarem sonâmbulos por 90 anos.
Mas também não sonhariam, porque de tudo já haviam sonhado.
E já não teriam medo do que imaginavam porque já viveram vários pesadelos que permaneceram sem conseguirem acordar de volta e falar “Ufa! Era um sonho!”. Ficaram nesses pesadelos até o fim. Conseguiram esperar passar, por mais demorados que fossem.
E as coisas boas já tinham também imaginado em sonho e até vivido. Não teriam o “ai que pena! Jurava que era real, quero continuar sonhando.” Já haviam passado tim tim por tim tim o sonho que sonharam de bom.
E quando acordassem, todos diriam “bom dia” para várias noites e vários dias, até o resto da vida. 
Mas também ninguém sonharia em vida, só relembrariam de coisas que já tinham vivenciado. Passariam por ruas e alamedas desconfiando que já tinham por ali passado.
E como ninguém, a não ser os que já estivessem dormindo, iria descansar, íamos todos ficar a labutar e depois tínhamos folga a noite sem dormir, só festejar, ir aos bares ou contemplar o nada fazer. Isso se os poderosos tristes e fracos não construíssem logo logo empregos de vinte quatro horas seguidas. Porque eles mesmos, os poderosos, pouco podem na vida. E as pessoas não descansariam até sua morte. O lazer seria coisa pouca porque já tinham passado o tempo do descanso.
O descaso geral seria para os hotéis, hospedarias, pousadas que não iam precisar de cama. Os apartamentos já não teriam quartos, bastava uma sala para conveniência dos amigos e visitas e os armários para guardar as coisas. As camas seriam todas reservadas para os que ainda dormiam no berço. Já as casas noturnas, os cabarés, os bares, restaurantes e tudo que contempla o lado mais escuro do dia seria sempre lotado, afinal poucos aturariam ficar em casa de madrugada.
Teríamos enormes berçários nos hospitais. Afinal só teríamos camas em duas ocasiões: nas doenças e ao nascer. Não precisaríamos de descansos que necessitassem de cama. Nela já tínhamos estado muito.
As pessoas só descansariam, mas nunca chegariam à profundidade do sono. Nem fechariam os olhos por horas seguidas. Todas acordadas, quantas revoltas, quantas revoluções fariam os humanos. Haveria guerra fácil, porque os insuportáveis não suportariam a vida. 
Quantas virtudes nunca se revigorariam porque ninguém mais amoleceria o coração ao anoitecer. 
Ninguém mais saberia atuar e ser o espectador ao mesmo tempo. Coisa que só se faz em sono. Apenas atuariam, sem perceber o que olhar. Atores, mas não autores. As coisas secretas de nós mesmos que vem no sonho seriam coisa que jamais acessaríamos. 
Os sonâmbulos seriam os únicos bem vindos nesse sentido. Porque eles conseguiriam resgatar aqueles estados do início da vida. Sonhariam acordados como os loucos. 
E os loucos julgariam que eram capazes de dormir e sairiam dizendo nas ruas que coisa grande era aquela novidade e que importância suas vidas tinham. O poeta anunciaria que deveríamos ouví-los, pois era o sonho que haviam sonhado depois de trinta anos. Ninguém acreditaria que eles tinham conseguido isso. 
E para todo o resto que não sonhara em vida, na labuta de seus patrões tristes, apenas se encerrava a vida sem sonho. A morte era o puro cansaço de uma vida que nunca mais sonhou. Era a bênção tão prometida, recompensadora do vazio da vida.
Nada disso é muito distante do que hoje fazemos sem sonhar, sem descansar, sem viver, mas também sem morrer.

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

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