domingo, 27 de fevereiro de 2022
Onomatopeia do fim.
domingo, 20 de fevereiro de 2022
Aldinha
Não posso mais tocar
Não posso mais sentir o carinho
Não posso mais pedir uma história que ela lembrava
Não posso mais pedir pra saber como era quando eu era criança
Não posso mais pedir pra ela pastel de queijo
Não posso mais pedir pra ela meu bolo de goma
Não posso mais ir na sua casa e sentir seu cheiro, sentir seu abraço e seu beijo
Não posso mais pedir para que me conte o dia em que eu nasci
Não posso falar com a única pessoa na vida, a única que nunca me aborreci, que nunca briguei, que nunca me irritei...
Há 5 anos já tinha ido o mental, com o Alzheimer confundia-me com outros netos, não lembrava tanto
dos detalhes nas histórias
Há muito não tinha eu os detalhes dela
Mas o fato é que foi-se...
Que não posso mais tocar...
A vida agora é o tudo o que havia antes, porém sem ela
E não posso mais um monte de coisa
Só resta lembrar o quanto era forte, o quanto era algo o mais próximo que vi de uma santa
Nunca foi à Fátima, seu sonho, mas mesmo assim dentro dela era como Fátima
Fazia milagres
Só resta lembrar o quanto era humilde, às vezes teimosa, mas sempre cuidadosa consigo mesma e com
os outros
Só resta lembrar o que aprendi para ter pulso firme levantando sempre a mão esquerda
Mas agora a vida é tudo o que era antes, porém sem ela
E nessas horas queria reinvidicar de Deus meu direito de sofrer na hora certa
Deus sendo esse ser dotado de vontade devia nos dar a chance de fazer uma cesária da morte
Escolher hora e data, já que o dia estaria chegando
E a gente ia lá e se despedia de todo mundo
Ele nos mandava embora sem estarmos em hospitais, sem sofrer
Só se despedindo como quem viaja e olha uma paisagem bonita pela última vez, talvez até festejando e fazendo da morte um momento único como o nascimento
Mais simples seria se trágico fosse
Ao guardar certa tragicidade ganharíamos talvez bem mais beleza e força
Jayme Mathias
domingo, 13 de fevereiro de 2022
O pequeno entrave.
Em uma dessas cidades antigas, perdidas no sudeste brasileiro, lembrei-me de um conto passado e longínquo, quase sem dono. Ruas de pedras batidas, casas coloniais com fachadas espessas e firmes. Templos carregados com o peso do tempo, cheios de histórias disseminadas em suas paredes e ruelas. O chão da cidade é sedento por aquilo que mais bebe, morte e vida. A multidão que nela caminha passa, ao seu ritmo, sobre os trajetos das eras, rumo ao esquecimento das ruas. Como em toda memória, a cidade colônia é lembrança e esquecimento. Suas casas, templos religiosos e narradores guardam o tempo, enquanto a rua da modernidade transpassa, mira o firmamento distraído.
Senhor Francisco, 57 anos. Apanha todas as manhãs o mesmo ônibus de ida e volta ao museu da cidade, onde trabalha há 26 anos. Desce em frente a praça principal, dobra na ruela do esquecimento (Júlia Augusta), assim chamada por ser pouco habitada. Decai a ladeira da vigília e finalmente chega a morada histórica da rememoração colonial. No trabalho sempre foi atento e prestativo, tem orgulho de ser historiador reconhecido e certificado pela comunidade, sustentando a alcunha de seu título, materializada por uma visita de um presidente português à sua cidadela no fim dos anos 90, onde foi porta voz da história viva narrada de seu povo, ato que lhe rendeu um broche lusitano. Xico, como gostava de ser lembrado, almoçava todas as tardes num antigo restaurante a 203 anos acomodado diante à igreja que inspirou seu nome. Comunicativo, amava conversar com os turistas, principalmente os curiosos, que por vezes conseguiam reaver, nos cômodos mais profundos, as obras adormecidas em seu corpo museológico. Claro, nem sempre o seu labor era assim, na maior parte do tempo recebia turistas mecanicamente automatizados, o que lhe exigia formular respostas enlatadas.
Retornando para casa, próximo ao fim de tarde, passou pelos variáveis e desconhecidos mendigos que se acomodavam na ruela do esquecimento, já que lá conseguiam o devido descanso da invisibilidade programada, do frio e da fome, debaixo de seus cobertores. Majoritariamente eram tipos variáveis pois, nômades, descartáveis, solúveis. Para Xico os indigentes que dormiam na ruela do esquecimento eram uma parte triste da história de sua cidade. Enquanto caminhava pela via, agora noturna e congelante de inverno, seguindo em direção ao ponto de ônibus, pensava o quanto deveria conversar com aqueles que lhe foram negados à história, que somente tinham o seu lugar às portas dos museus. Infelizmente, ao meio do percurso, teve um mal súbito e caiu, sozinho. Sem forças para se levantar decidiu dormir no chão, numa calçada pertencente a um casarão com mais de dois séculos de tempo. Esperou, imóvel, mas manteve-se leve pois dormia sob o mesmo céu de sua infância, no mesmo chão, repousando sobre a fronha de sua cidade.
No outro dia tudo igual. Carros passavam, cachorros, crianças, senhoras, mendigos. Todos miravam o futuro e seguiam na corda bamba à espera do abismo. Xico, adormecido, aguardava. Desviava o fluxo da calçada, mas mantinha-se imóvel, resiliente. Permaneceu deitado o fim de semana inteiro. Na segunda-feira, por um descuido, logo pela manhã quando todos devem retomar seus afazeres produtivos, teve o repouso interrompido por um dos pedintes da travessa com um leve cutucão nas costas. Seu chamado nunca foi atendido.
Paulo Victor de Albuquerque Silva.