Andei mais dois quarteirões até chegar à praça do Ferreira. Sentei num banco da praça perto de alguns conhecidos. Tínhamos acabado de almoçar e o grande relógio da praça tocava a mesma ferrugem desgastada, como no dia em que meu pai me apresentou ao centro da cidade. Sol a pico, até os pombos buscavam abrigo, estavam enfileirados no letreiro do Cine São Luiz, que anunciava mais um filme do Almodóvar. Ao lado do cinema fica o lugar mais fresco nesse horário, e André estava lá com seu saco cheio de latinhas. Me aproximei dele, dei um beijo em sua testa, sorri e sentei. André me disse que tinha trago um presente, era uma luva prateada. Ele sempre se lembrava de mim, demonstrava seu afeto através dessas pequenas lembrancinhas que me avivavam em sua memória. Trouxe-me as luvas pois sabia do meu apreço pela moda clássica francesa e seus cabarés, queria fazer de mim sua mulher. Faltava-me as maquiagens, os apliques, as unhas postiças, silicones, mas não faltavam as luvas. À noite, quando fazíamos amor escondidos dos transeuntes debaixo do edredom, ele me prometia um novo lar, onde eu jamais seria expulsa de casa.
A vida noturna no centro é muito aterradora. Cada morador das ruelas, que cortam os prédios históricos do século XIX e XX, carregam consigo o instinto animalesco das selvas primitivas rochosas, todos portam suas armas brancas: canivetes, facas de cozinha, estiletes, navalhas, etc. Não é preciso muito, uma arma, roupas, crack, papelão, álcool, cola. O bicho demasiadamente desumanizado reside em tais seres que tanto se unem quanto se matam passionalmente. Semana passada Jorge assassinou a facadas Henrique por conta de um resto de quentinha furtada no sono da tarde. São um tipo de humano que não possui os meios de produção ou propriedade privada, nem mesmo uma força de trabalho, não são sujeitos históricos, desvelam o inumano, somente são donos de um corpo que come e mata. Eu moro na Travessa Severiano Ribeiro, logo ao lado do Cine São Luiz que nunca entrei, mas que me sustenta com o dinheiro de seus frequentadores, eu peço, para não ter que me prostituir. André não gosta de dividir meu corpo com o de outros homens, antes eu vendia minha carcaça como uma máquina industrial com várias funções bem pró-ativas, usava a boca, ou a mão, o pênis, o ânus, etc. Perto da Praça das Crianças sempre apareciam alguns tarados drogados à procura de partes do meu corpo.
Hoje não sou mais adépta da prostituição, mas gostaria de aperfeiçoar meu maquinário sexual para satisfazer o único homem que me valoriza como mulher, André. Junto às vitrines das grandes lojas e seus suvenires, as várias clínicas clandestinas, as lojas de sapatos, perfumes, bijuterias, lingeries, sonho com meus peitos, minha bunda, minha vagina, tudo à mão, como promessa, no templo da mercadoria. Afinal, tantas mulheres com seus corpos de mulheres, e eu? Sonho com meu corpo.
Decidi fazer uma oferenda de uma parte do meu corpo, escolhi a mão, uma só, como fazia o Michael Jackson, venerei a mão direita com a luva azul. Andava pela praça do Ferreira com a mão estendida, como se ela fosse um autômato prateado que recebia moedas de mesma cor. Com o tempo minha mão fez sucesso na praça, no bairro, até aparecer uma repórter para entrevistar a portadora da mão. Três dias depois estava ela estampada na capa do principal jornal da cidade, tinha se banhado para que ficasse reluzindo a luz do sol, cintilante, ao fundo meu rosto. A matéria falava sobre mim, minha história, a ideia da mão. Engraçado como quando lemos sobre a fome à tornamos plasticamente sofrida, uma espécie de romantização do vazio no bucho. A repórter me pagou comida e por um tempo, de barriga cheia, eu pude sonhar, contei dos meus planos, sobre o meu corpo e ela me disse que talvez, com a publicação da matéria, eu poderia ser redimida, recebendo o corpo que ainda não fui.
Paulo Victor de Albuquerque Silva
Amo suas crônicas. Sua forma de narrar é incrivelmente contagiante❤️👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirMuito bom! Deves investir nessa literatura!
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