domingo, 3 de janeiro de 2021

D'abord



Assim como a dança é para o dançarino seu oxigênio, a poesia é para o poeta.

Um universo tão necessário e singular reside em cada um, quanto distingue-se alheio aos que não vivem de dança ou poesia, ou de odontologia, ou quaisquer outros ofícios. Porém nem tanto assim.

De modo que ainda que o poeta não esteja excluído de sentir a dança, a percebe como poesia do corpo. E o dançarino encontra na poesia uma dança de palavras.

Trazemos à nossa percepção o mundo como o amamos ou odiamos, o associando àquilo que conhecemos como real.

Essa captação singular e sensível é o que nos torna únicos.

Uma impressão digital do espírito.

A percepção de um único ato, de uma fração de segundo, que se reinventa a cada novo olhar.

A poesia se desdobra nos lábios, ouvidos e pele de cada um.

"Uma vez escrita, não é mais sua."

Um verso é gatilho para uns e o inverso para outros, indiferente.

De tantas particularidades, da volatilidade, de tantos pequenos instantes, como querer que um ano tenha o mesmo significado para todos?

Ainda assim, em 31 de dezembro, todos se reúnem para "celebrar."

Celebrar o quê?

Na busca pela verdade universal, a filosofia vem tentando entender o que essa relativização guarda como essência comum, que logicamente tornar-se-á irrefutável aos que negam existir qualquer parâmetro objetivo. Assim, aqueles que teimam em desmentir o sentido da vida e das coisas, então, haverão de concordar, pela força da matemática, que a vida tem uma verdade absoluta.

De certo que a tradição revela estar repleta de vastos e inúmeros trabalhos e obras dedicadas a este ofício, que vão desde antigos a contemporâneos, resignados em achar o uno, o elo, o demiurgo, o motivo pelo qual somos.

Os sentidos então brincam nesse percurso, fantasiados de ninfas e sátiros no cotidiano, emaranhando o homem em suas armadilhas.

Mesmo com tudo isso, dia 31 lá estão. Alguns só apanharam o ano inteiro, mesmo aparentemente sem motivos, não se furtam de beber aquela cidra e comer a sementinha de romã, outros pulam 7 ondas, outros usam roupas vermelhas, outros choram, outros bebem até cair, outros comemoram as conquistas, alguns apenas fecham os olhos em silêncio e agradecem mentalmente estar vivos depois de um ano de cão.

Quantos motivos vertem-se em lágrimas no choro? Quantas razões se convertem na força de um abraço? Quantos sentimentos seriam contabilizados no aterro da praia de Iracema depois da meia noite?

Se um instante é tão variável, como é que, em nome de qualquer filosofia, vou achar uma verdade do universo sobre todas as coisas?

Longe de tentar captar uma resposta, ou dar a tão dileta tradição um desfecho relevante, mas como uma observação de quem às vezes conversa com a vida e ela responde, eu chuto. Que essa tal verdade universal seja o amor.

"Só pelo amor o homem se realiza plenamente."

É o amor pela vida que faz aquele que silencia ser grato. É o amor pela prosperidade que faz aquele fulano comer as romãs. É o amor por uma boa sorte que leva o sicrano a pular 7 ondinhas. É o amor pela paixão que fez o Francisco usar vermelho, é o amor pela sabedoria que faz o Jayme e o Paulo se desdobrarem em teses para então descobrir que elas pouco importam e que vivisseccionar vale muito mais, é o amor pela esperança que une mesmo os mais desafortunados para o que se consentiu ser o fim de um ciclo e o início de outro e torcer pelo melhor.

Um ano despedaçante que se encerra, dessa vez em silêncio.

Outro ainda anônimo se ensaia a frente.

Não há queima de fogos na beira-mar.

Mas de certo ela queima na memória de muitos que estarão em casa lembrando. Dos que se foram, dos que ficaram, dos que virão.

O amor que era junto, permanece, ainda em "pequenos pontos de luz ancorados."

Iniciou-se a pouco mais de 2 dias e cá estou eu divagando sobre o que aconteceu depois desse cruzado que a vida acertou em cheio na têmpora da humanidade.

Nocauteados, seguramos nas cordas para levantar, buscamos o rosto do juíz.

Último texto de um ano ruim, ou primeiro de um ano que sabe-se lá como será...prefiro pensar nele como um Blaise Pascal, que ganharei mais acreditando que seja bom, de sorte, que mesmo depois de um "C'est fini", há de vir um "D'abord."

Arrisco, portanto, dizer que a única convicção que tenho é aquela que sinto, a de que ainda amo.

Júlio César

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