No fim da tarde, quando a meia lua branca estava no céu limpo, o velho pedro contou as moedas que tinha conseguido naquele dia, somou com outras tantas que tinha no bolso e percebeu que eram bastantes. Levantou a cabeça, mas somente o suficiente para que pudesse ver o caminho que tinha que andar – “A vergonha”, pensou o velho, “é como as sacas de feijão que um dia já carreguei no lombo: pesa tanto sobre a cabeça que não consigo dobrar o pescoço no rumo de cima”. Caminhou rápido, com pressa, a ponto de conseguir chegar ao armazém da cidade quando ainda estava aberto. “Senhor, quanto de madeira consigo com esse dinheiro?”, disse pedro ao dono da venda. Ele lhe mostrou, pesando na balança, o tantinho de caibros sujos que correspondia àquelas moedas. “Servem. Muito obrigado”, disse ele, preenchendo o vazio que se fazia presente naquele saco de pano. Dali, o velho pedro tomou a direção do lugar onde a sua derradeira tarefa havia de se cumprir. Andou, e andou mais, até que saiu da cidade. Tomou estrada de terra, contornou as curvas que entortavam o caminho, até que caminhou pela vereda que lhe levaria, finalmente, ao lugar.
Chegou ao cemitério. No cemitério há ruas, há esquinas, há endereços. Mas, ali não andam carros, só há o vale de lágrimas dos transeuntes desconsolados, sem pressa em prestar suas homenagens desaceleradas naquele espaço despregado do tempo: em cemitérios só há eternidades. O velho pedro tomou seu rumo, que era certo, e dobrou as esquinas que precisava, até que chegou ao seu endereço. Olhou para o chão e viu a cruz de madeira, tão conhecida sua, enfiada na terra. A cruz era feita de duas varetas simples, imperfeitamente sinuosas, envolvidas em folhas de carnaúba no lugar onde se cruzavam. Pedro pegou a cruz com a mão e a arremessou o mais longe que podia – a força que havia feito no movimento foi tanta que, logo após fazê-lo, ofegou por alguns segundos. O homem olhou para o saco de pano, pegou-o pelos fundos e virou-o de cabeça para baixo, derramando sobre o chão os pedaços de madeira que ali havia. Percebeu, então, que precisava de pedras, algo para amarrar, algo para martelar, algo para cobrir. Recolheu tudo o que precisava na mata que havia ao redor e começou a trabalhar. Cortou, amarrou, fincou na terra, ajustou, testou a resistência – corria a noite e o homem trabalhava. Na meia noite, quando era certo o dois de novembro, uma pequena procissão entrou pelo cemitério, sendo possível escutar o canto lúgubre das cinco ou seis senhoras que procuravam o seu endereço na floresta de lápides e jazigos. As senhoras passaram pelo homem e viram-no trabalhar. Uma delas segurou o passo, quando finalmente parou e deixou que seu cortejo seguisse. “O que o senhor faz, a essa hora? Veio homenagear parente?”, perguntou ela curiosa. “Vim, sim senhora”, disse ele sem parar o trabalho. A senhora olhou mais um pouco, viu o disparate e não se aguentou, “Mas, não deveria rezar, ao invés de cortar madeira?”, disse, incrédula, ao que o homem respondeu, “Senhora, eu errei com ela e faço o que tenho que fazer”, disse ele, olhando para a velha mulher com os olhos cheios d’água. “Todos erramos, senhor, somos pó e pecado. Todos que estão aqui, os vivos e os mortos, erraram, e erraram muito. Jesus Cristo tenha piedade da tua alma e que Nossa Senhora te acuda. Conta o teu erro, e alivia a tua alma”.
Pedro vivera naquela cidade por muito tempo. Ali, tivera uma família, era esposo de Maria Cleonice e pai de Helena. O homem batia na sua filha, maltratava muito ela. Sem motivos para tanto, sacava o cinto do cós da calça e marcava as pernas da menina sem abrir mão da força de homem que lhe era disponível. Ele bebia e farreava bastante. Não batia na mulher, mas lhe machucava de outras maneiras, pois todos sabiam o quão mulherengo era pedro. Certa noite, o homem fora para o forró, conhecera uma mulher e por ela se apaixonara. Um mês depois, Pedro fora embora com a nova companheira para o sul, tentar vida nova. A mulher e a menina ficaram sozinhas. Quando a seca chegara, passaram fome e sede. Um dia, a filha reclamara tanto da garganta seca que a mãe a levara para o açude, pegara a lama barrenta de uma poça com a mão e espremera, deixando derramar o líquido preto na boca da criança. Na nova terra, pedro não fora feliz. Não arranjara emprego e a mulher o deixara para ficar com outro homem. Regressara. Fora para a sua antiga casa e encontrara apenas estranhos. Os vizinhos lhe disseram que a menina, Helena, morrera na seca, e Maria fora embora, não se sabendo mais notícias dela. O homem chorara e se desesperara, sentira culpa, sentira vontade de morrer. Desconsolado, fora ao cemitério procurar pelo sepulcro da filha, sem sucesso. O homem que cuidava do cemitério guiara pedro até o lugar onde uma menina que morrera na seca havia sido sepultada. Ele vira apenas a cruz de madeira, nada mais. Não havia identificação, não havia lápide, não havia sequer um papel, que uma boa alma poderia ter pregado naquelas varetas, com o nome da menina. “Uma criança não merece esse abandono”, pensara ele, no auge da culpa. Ali, fizera promessa e dissera que não iria descansar enquanto não construísse sepulcro decente para Helena. Procurara emprego, e não conseguira. Colocara-se, então, a mendigar. Passaram-se anos, décadas, e das moedas de todos os dias, separava uma parte para a sua promessa e gastava o resto com comida.
Pedro contou esta mesma história para a senhora e terminou dizendo, “Aqui estou, tentando cumprir minha promessa. Sou indigno, porque abandonei minha família e vim me redimir, se possível for”. Pedro percebeu, quando terminou, que a senhora vestia um manto azul sobre a cabeça, que escorria pelos ombros até chegar à cintura. Na parte imediatamente circunscrita à cabeça, havia um círculo bordado em dourado. “Homem és, feito de pó e pecado. Acalma a tua alma, porque foste feito para errar. Que os anjos te guardem e que o Senhor abençoe tua obra. Quando terminar teu trabalho, ajoelha-te e reza um Pai Nosso e um Ave Maria. Assim sendo, ficarás em paz”. A senhora virou as costas e voltou a caminhar, indo em direção à procissão. Pedro, como lhe fora mandado, voltou a trabalhar, e, quando terminou, ajoelhou-se e pôs-se a dizer as palavras santas. Ao fim da reza, uma luz alva desceu dos céus, iluminando todo o cemitério. A luz repousou sobre aquele pobre amontoado de madeira, posto em forma de sepulcro por Pedro e tudo o que era madeira virou pedra; um lindo jazigo, adornado em mármore branco, ali se formou, como numa mágica. A obra estava pronta e o Velho Pedro teve paz.
Por Willem Carneiro
vivisseccao.blogspot.com
Bela reflexão. Que valorizemos as pessoas aqui e agora.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Espero que concitnue acompanhando o blog...
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